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quarta-feira, 5 de maio de 2010

O TIP como um processo criminoso organizado

O TIP entende-se melhor se for percebido como um processo que engloba várias fases e vários delitos conectados do que se for percebido como um delito único e circunscrito a um acto apenas. É, portanto, um processo criminoso, e não um acto criminoso. Como vamos perceber, esta é uma das razões que bloqueia a eficácia das investigações policiais, bem como a condenação dos traficantes. Cada caso de tráfico tem aspectos particulares, tais como rotas particulares, pessoas distintas. Porém também detém aspectos comuns como as fases inerentes ao processo: o recrutamento, o transporte de pessoas, a exploração e o controlo das vítimas e, em alguns casos, dependendo da organização e sofisticação dos grupos, a lavagem de dinheiro proveniente da exploração. Estas fases, obviamente, fazem parte do lado criminoso, no entanto podemos perceber o fenómeno do tráfico por parte das vítimas e estruturá-lo de forma diferente. Tal iremos fazê-lo numa mensagem posterior.
Como já falamos, o TIP é um negócio extremamente rentável, com uma organização complexa, dinâmica, adaptável e difícil de combater. Como outras formas de crime organizado, muda constantemente de estratégias com o fim de burlar os esforços de prevenção dos organismos encarregados para cumprir a lei. Num certo sentido, pode dizer-se que é mais rentável do que o tráfico de drogas ou armas porque as mulheres, crianças e homens traficados podem ser vendidos e revendidos várias vezes. A seguinte frase de um traficante ilustra plenamente esta noção:


Podes comprar uma mulher por 10,000 dólares e podes ter o teu dinheiro de volta numa semana se ela for bonita e jovem. Depois, tudo o resto é lucro” (Malarek, 2004).


Por outro lado, os riscos que os traficantes de pessoas passam são mais baixos que os riscos que surgem no tráfico de armas ou drogas. Isto ocorre porque para além das mulheres, na maior parte das vezes, não conhecerem a cultura e língua do país onde se encontram, também estão sob formas de coerção e violência que diminuem o risco de qualquer tipo de denúncia. Em acréscimo, em muitos países, o quadro normativo-jurídico nesta matéria é muito vago ou inexistente, e mesmo quando a lei parece ser adequada os traficantes raramente são condenados ou, pelo menos, condenados com penas severas que levem a que o risco seja superior ao lucro que se pode obter. É por tal que grupos organizados ligados a outras áreas de crime organizados, bem como novos grupos, se associem ao TIP.
Não obstante, existem outros factores que facilitam o TIP, como por exemplo, a permeabilidade das fronteiras, os polícias, agentes dos serviços de fronteiras e outros agentes da lei corruptos (em vários casos, estes colaboram, tendo uma atitude passiva em relação ao fenómeno, alimentando o crescimento da indústria como clientes frequentes ou aceitando subornos para não denunciar certas situações, podendo estar ligados também de forma mais directa, sendo eles traficantes ou recrutadores). Por fim, o papel das redes organizadas é fulcral. Vejamos, o TIP pode ocorrer a cargo de uma serie de organizações pequenas com alguns vínculos entre si que captam as vítimas e as vendem entre as várias organizações, passando assim as vítimas de país para país. Desta forma, é possível explorar vários mercados com o propósito de alcançar o máximo de lucro possível, sendo que a sua estrutura descentralizada e flexível (diferentes das antigas máfias onde existiam hierarquias bem delimitadas) permite que os grupos surjam menos como concorrentes e mais como colaboradores, criando grandes redes com várias subunidades especializadas numa determinada função, seja o recrutamento, seja o smuggling ou a exploração sexual. A absorção de várias especializações numa só rede permite uma enorme adaptação a novos mercados e, por isso mesmo, os grandes grupos estão a deixar progressivamente de estar organizados hierarquicamente, tendo ao invés uma estrutura mais horizontal. Contudo, na análise de um grupo organizado de traficantes podemos encontrar grupos hierarquicamente organizados. Detemos, portanto, duas tipologias: a standard hierarchy e o core group (acima referido, sendo mais comum). O primeiro é uma forma de organização privilegiada dos grupos que estejam envolvidos, normalmente, em várias actividades criminosas: são estruturalmente organizados e com fortes linhas internas de controlo e disciplina. Alguns possuem liderança singular e uma forte identidade étnica. O segundo grupo tem como actividade única o TIP. Estes raramente têm uma identidade social ou étnica, orientando-se, basicamente, para o lucro e oportunidades de mercado. Esta segunda categoria pode ser extremamente violenta e mantém contacto com outros grupos criminosos.

Como ocorre o recrutamento de pessoas? Independentemente da estrutura do grupo, o TIP passa por algumas fases, dadas como universais. Começa, portanto, pelo recrutamento de pessoas para fins de exploração. Como vimos anteriormente os recrutadores podem ser pessoas conhecidas pelas vítimas, sem qualquer registo criminal – familiares, namorados, amigos ou vizinhos - ou pessoas que pela sua posição na sociedade transparecem segurança e legitimidade – polícia, militares, agentes de viagens, entre outros. Em outros casos, obviamente, podem ser indivíduos que fazem parte da rede criminosa e que são desconhecidos para o sujeito. No entanto, isto ocorre, de forma geral, em casos de rapto. Alguns estudos apontam que o rapto encontra-se em expansão, como método de recrutamento, principalmente em países como a Moldávia, a Roménia e Bulgária. Nestes países, muitos pais proíbem as suas filhas de irem à escola como forma de protecção. Por outro lado, temos as agências de emprego e viagens que levam as mulheres a acreditar que vão trabalhar como modelos, dançarinas ou empregadas. No caso dos homens, o que acontece é que estes pensam ir trabalhar em empregos cujos salários são elevados e as horas de trabalho reduzidas. Porém, esta modalidade de recrutamento é altamente disseminada. O que é importante nesta fase é a credibilidade para que o recrutamento seja efectivo, sem que aparentemente, apesar de o ser, exiba a fraude e o engano. Um estudo realizado no Brasil, mostra que há uma tendência para os recrutadores serem do sexo feminino e com uma idade avançada, mais uma vez com o objectivo de transmitir credibilidade e segurança, num registo de alguém mais experiente que aconselha mulheres a aceitar ofertas. Por outro lado, ao contrário do que se poderia pensar à partida, estão, muitas vezes, em causa recrutadores com nível médio ou superior de educação. O recrutamento é cada vez mais uma das fases que os traficantes e associados tendem a sofisticar para que este seja efectivo. As promessas de casamento são cada vez mais usuais. Por exemplo, como constatamos no documentário conduzido por Angelina Jolie, “Tatjana” uma das “personagens” foi recrutada por um “lover-boy”, homens que namoram com mulheres durante um considerável período de tempo, ganhando a sua confiança e a da sua família e, com a promessa de casamento, convencem-nas a emigrar. Este caso demonstra a sofisticação dos meios de recrutamento. Este método continuará a ser comum pelo seu alto nível de fiabilidade e para combater a divulgação preventiva do tráfico humano por parte das agências governamentais e ONGs que alertam para os crescentes riscos das agências de emprego e viagens. Outro meio para o recrutamento, em expansão, é a procura de jovens mulheres em orfanatos. A criatividade inerente às formas de recrutamento, bem como o facto de estarem ligadas a este processo vários tipos de pessoas que não a rede directamente, torna as iniciativas preventivas e o trabalho da polícia mais difícil e menos preventivo. No fundo, é possível dizer-se que qualquer pessoa que conheça alguém ligado ao tráfico pode tornar-se um recrutador. Basta ter uma história para persuadir, ou o poder para forçar a pessoa recrutada a ir com ela ou ter dinheiro para pagar a uma família que está disposta a vender os filhos/as.


Como ocorre o transporte das vítimas? Em seguida, surge a fase do transporte que basicamente é a condução das mulheres para o primeiro local onde vão ser exploradas. Tal como no recrutamento, esta fase denota grande criatividade dos traficantes, existindo a possibilidade de recorrer a meios legais. É possível que a viagem até o outro país, no caso de a viagem ser transnacional, seja realizada de forma legal através de vistos de turistas, estudantes ou trabalho temporário. Por exemplo, muitas mulheres entram nos países como noivas de encomenda (Mail-Order Brides), mulheres que intencionam casar com alguém de outro país, normalmente financeiramente mais desenvolvido. Por outro lado, há países europeus que proporcionam vistos para as pessoas trabalharem na indústria do sexo. Quando as manobras legais não estão disponíveis, recorre-se ao smuggling.


Como se mantêm as vítimas sobre controlo? Aqui temos a fase denominada de distribuição, exploração e formas de controlo. Assim, após o transporte as pessoas são colocadas nos locais onde vão ser alvo de exploração. Já conhecemos algumas das formas de coação exercidas pelos traficantes como servidão por dívida, ameaças, chantagem e violência. As três primeiras são formas de controlo mais artesanais. Qualquer uma das formas de coação utilizadas são independentes do grupo criminoso, sendo que apenas se consta que os Grupos da Europa Central e de Leste são catalogados como mais violentos, existindo mesmo casos de assassinatos. De forma geral, no caso das mulheres traficadas para fins de exploração sexual, passam pelo que se chama “Breaking-in Violence”, uma violência inicial, com constantes violações e espancamentos de modo que a pessoa se submeta a tudo que é ordenado. Outras mulheres são, ainda, alvo de violência rotineira para manter a mesma obediência, como um castigo ou, meramente, para satisfazer o traficante ou proxeneta. Normalmente, esta violência é exercida junto do grupo total de mulheres traficadas para que as outras receiem que algo lhes possa acontecer. Outras formas de controlo são a restrição da liberdade (as vítimas estão confinadas a um espaço específico e só saem acompanhadas), rotatividade dos locais de prostituição (impedindo o estabelecimento de contactos ou potenciais relações de amizade), administração de drogas (tornando as vítimas toxicodependentes, os traficantes conseguem que as vítimas se tornem mais dependentes destes), a ameaça de deportação, ameaça de colocação de tatuagens no corpo da vítima como título de dívida e ameaças de feitiçaria (principalmente às mulheres africanas). Durante o tempo que são exploradas por proxenetas, as mulheres são obrigadas a fazer todas as práticas sexuais desejadas pelos homens que atendem, a não usar preservativo, a ter relações sexuais quando menstruadas e grávidas e a fazer abortos sem anestesia. Em média, estima-se que tenham de atender cerca de 20/30 homens por dia, ainda que estejam doentes.


Os clientes devem ser penalizados judicialmente por pagar por mulheres traficadas? Os clientes e a elevada procura são assuntos determinantes. Pessoas de todos os géneros pagam por serviços sexuais e laborais, por uma variedade de motivos. No entanto, o debate não é consensual sobre se a procura determina a oferta do tráfico ou vice-versa. De um lado surge a perspectiva de que os clientes do sexo não são os clientes das mulheres traficadas; por outro lado, posicionam-se as opiniões de que sem procura não há oferta e que o tráfico só é rentável pela expansão do mercado do sexo. De acordo com esta perspectiva, o combate deve passar pela penalização dos clientes, como ocorre em países como a Suécia. Outros factores, mais qualitativos devem se ter em conta nesta discussão, mais do que propriamente o número de clientes: o preço dos serviços é um exemplo. Os clientes procuram serviços sexuais por preços reduzidos. Ora, as mulheres traficadas que estão submetidas a medidas de coação são as vítimas “perfeitas” no que concerne à prostituição a preços reduzidos. Desta forma, e conjuntamente com o facto de estas mulheres serem obrigadas a serem mais permissivas e não usarem preservativo, faz com que os clientes sejam direccionados para mulheres traficadas do que para prostitutas voluntárias. Assim, podemos perceber que apesar de a procura ser determinante, a estrutura do mercado sexual das mulheres traficadas também tem aspectos que determinam o porquê da elevada procura.


Porque é tão difícil combater o TIP? Este aspecto recai sobre a diversidade de crimes cometidos ao longo do processo e sobre as dificuldades no combate ao TIP. Não é só o crime de tráfico que está em jogo quando falamos no processo de recrutamento, transporte, exploração e controlo das vítimas. Cometem-se muitos outros crimes para assegurar a submissão das vítimas, para o controlo das mesmas, para protecção das operações envolvidas no processo e para obter o máximo de lucros e benefícios. Estes actos podem invocar-se para combater o TIP nos países em que este crime ainda não é bem definido ou em países onde as penas não reflectem a gravidade do delito ou ainda em casos em que não há provas suficientes para aplicar a pena relativa ao tráfico de pessoas. A seguinte tabela mostra os crimes conexos que podem ser úteis na delimitação e penalização de um caso de tráfico humano.


Mesmo tendo em conta estes diversos crimes, a investigação e aplicação da lei torna-se difícil. Porquê? É muito difícil identificar um traficante, mais ainda condená-lo devido a necessidade frequente da sua condenação depender de provas obtidas no estrangeiro, a possibilidade das vítimas puderem sofrer represálias, o facto de os próprios membros da polícia serem corruptos, a necessidade de tradutores e intérpretes e a penalização da prostituição em alguns países (em Portugal, é legal).



(baseado em: “Tráfico de mulheres em Portugal para fins de exploração sexual”, Centro de Estudos Sociais de Universidade de Coimbra
“Manual para la lucha contra la trata de personas”, Nações Unidas, 2006)

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